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A) Introdução
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Não se trata de um sucinto trabalho só para ver erros na nova legislação nem para só contestá-la. Ninguém pode estar contra lei ou medida governamental que pretenda reduzir a criminalidade no trânsito. Não pode passar sem percepção, entretanto, falhas na medida ou lei que, não obstante a boa intenção do legislador e do Governo e contando com expressiva aprovação popular(1), contrarie princípios como o da presunção de culpabilidade e da razoabilidade. Em 1980, integramos um grupo formado pelo Ministério da Justiça para apresentar sugestões à prevenção das infrações criminais de trânsito, inclusive a embriaguez ao volante, que, naquela época, era simples contravenção de direção perigosa (art. 34 da Lei das Contravenções Penais). Nada aconteceu. E escrevemos uma obra denominada Delitos de trânsito, na qual abordamos vários aspectos acerca da direção sob efeito de álcool (7. ed. São Paulo: Saraiva, 2008). Não somos, pois, "no atacado", contrários à nova lei. Nossa intenção é colaborar modestamente com o aperfeiçoamento da nova lei, que dá mostras momentâneas, com o recrudescimento da vigilância policial, de poder realmente diminuir as trágicas estatísticas da criminalidade viária(2). Para isso, contudo, é necessário que a fiscalização policial permaneça ou seja implantada onde não existe. Caso contrário, haverá o que já aconteceu várias vezes: a "lei não pega" e a criminalidade de trânsito volta a crescer(3). Pior, desmoraliza-se mais uma vez o Direito Penal(4). Faremos observações e daremos nossa opinião apenas sobre dois temas específicos: embriaguez ao volante como infração administrativa e como delito. Por último, observamos que os assuntos aqui sucintamente tratados serão objeto de trabalhos posteriores.
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B) Infração administrativa
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1. Definições legais
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1. Lei anterior
(Lei n. 11.275, de 7 de fevereiro de 2006, que alterou a redação do art. 165 do Código de Trânsito Brasileiro - CTB, em sua feição original):
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"Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica."
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2. Nova redação
(Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008; art. 5.º, II, com vigência a partir de 20 de junho):
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"Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Infração gravíssima. Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses.
Medida administrativa - retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado e recolhimento do documento de habilitação."
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2. Elemento subjetivo do tipo da infração administrativa: "sob a influência" (de álcool...):
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A figura não se perfaz com a simples direção de veículo após o condutor ingerir álcool ou substância similar. É necessário que o faça "sob a influência" dessas substâncias. Assim, não basta que ocorra, ao contrário do que determina o art. 276 do CTB, "qualquer concentração de álcool por litro de sangue" para sujeitar "o condutor às penalidades previstas no art. 165", de onde se originou incorretamente a expressão "tolerância zero", de maneira que não há infração administrativa quando o motorista realiza o tipo sem esse elemento subjetivo.
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Trata-se de elemento da figura infracional administrativa, da sua definição, sendo que, sem a sua ocorrência, não se aplica o art. 165 do CTB.
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3. O art. 276 do CTB não pode ser interpretado isoladamente Dispõe a norma:
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"Qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165 deste Código."
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O dispositivo leva ao falso entendimento de que, encontrado o motorista dirigindo veículo na via pública, com "qualquer concentração de álcool por litro de sangue", fica sujeito "às penalidades previstas no art. 165 do CTB." Quer dizer, bebeu e dirigiu: cometeu a infração administrativa.
Conclusão errada, pois são exigidas três condições:
1.ª) que o condutor tenha bebido;
2.ª) que esteja sob a "influência" da bebida;
3.ª) que, por causa do efeito da ingestão de álcool ou substância análoga, dirija o veículo de "forma anormal" ("direção anormal").
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A lei nova prevê limite de dois decigramas de álcool por litro de sangue (ou 0,3 mg de álcool por litro de ar expelido no bafômetro). Somente a partir desse limite é que se pode começar a verificar a existência de infração administrativa.
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4. Conceito da elementar "sob a influência"
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Dirigir veículo automotor, em via pública, "sob a influência" de álcool ou substância similar significa, sofrendo seus efeitos, conduzi-lo de forma anormal, fazendo ziguezagues, "costurando" o trânsito, realizando ultrapassagem proibida, "colado" ao veículo da frente, passando com o sinal vermelho, na contramão, com excesso de velocidade etc. De modo que, surpreendido o motorista dirigindo veículo, após ingerir bebida alcoólica, de forma normal, "independentemente do teor inebriante", não há infração administrativa, não se podendo falar em multa, apreensão do veículo e suspensão do direito de dirigir. Exige-se nexo de causalidade entre a condução anormal e a ingestão de álcool.
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5. Questões práticas
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1.ª) Um motorista, dirigindo corretamente na via pública, é submetido ao exame do bafômetro, apurando-se baixo teor alcoólico, inferior a 6 decigramas. Autuado por infração administrativa gravíssima, tem o veículo apreendido, paga multa e sofre suspensão do direito de dirigir por 12 meses.
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Certo ou errado?
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Errado. Diante da letra da lei nova, não há infração administrativa se estava dirigindo corretamente (condução normal).
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2.ª) Um motorista, dirigindo incorretamente na via pública, sob a influência de álcool, é submetido ao exame do bafômetro, apurando-se baixo teor alcoólico, inferior a 6 decigramas. Autuado por infração administrativa gravíssima, tem o veículo apreendido, paga multa e sofre suspensão do direito de dirigir por 12 meses.
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Certo ou errado?
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Certo, pois dirigia incorretamente e sob a influênia de álcool.
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C) Crime de embriaguez ao volante
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1. Definições típicas
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1. Código de Trânsito - lei anterior (Lei n. 11.275, de 7 de fevereiro de 2006):
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"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade pública."
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2. CTB - nova redação (Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008, art. 5.º, VIII, com vigência a partir de 20 de junho):
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"Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência:
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Penas - Detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor."
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1. Elemento objetivo do tipo
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Encontrar-se o condutor do veículo com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas. Achando-se o motorista com concentração de álcool inferior ao previsto na lei: não há crime. O teor de álcool (ou de ar) constitui elemento objetivo da figura típica. Como veremos, não é elementar única, exigindo o tipo um elemento subjetivo.
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2. Elemento subjetivo do tipo: dirigir "sob a influência"
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Não é suficiente que o motorista tenha ingerido bebida alcoólica ou outra substância de efeitos análogos para que ocorra o crime. É preciso que dirija o veículo "sob influência" dessas substâncias (elemento subjetivo do tipo; Ganzenmüller, Escudero e Frigola). O fato típico não se perfaz somente com a direção do motorista embriagado. É imprescindível que o faça "sob a influência" de álcool etc. Não há, assim, crime quando o motorista, embora provada a presença de mais de seis decigramas de álcool por litro de sangue, dirige normalmente o veículo.
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3. Efeito da ingestão de álcool na condução de veículo motorizado
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Não é suficiente prova de que o sujeito, embriagado, dirigiu veículo com determinada taxa de álcool no sangue ou que bebeu antes de dirigir. É imprescindível a demonstração da influência etílica na condução: que se tenha manifestado na forma de afetação efetiva da capacidade de dirigir veículo automotor, reduzindo ou alterando a capacidade sensorial, de atenção, de reflexos, de reação a uma situação de perigo (time-lag), com propensão ao sono etc. (modificação significativa das faculdades psíquicas ou sua diminuição no momento da direção), manifestando-se, como ficou consignado, numa condução imprudente, descuidada, temerária ou perigosa, de acordo com as regras da circulação viária (Ramón Maciá Gomez). A "barbeiragem", ainda que leve, é elementar do tipo, pois a conduta consiste em "dirigir sob a influência". Não é necessário que se encontre totalmente incapacitado de dirigir, bastando alteração ou diminuição de tal capacidade (Pilar Gómez Pavón).
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4. Onde se encontra a elementar "sob a influência"?
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O legislador, na definição da infração administrativa, inseriu a elementar "sob a influência":
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"Art. 165. Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer [...]"
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Na primeira parte da descrição do crime de embriaguez ao volante, entretanto, omitiu-a:
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"Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: [...]"
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Dividido o tipo penal em duas partes, pois cremos que foi essa a intenção do legislador, temos que a primeira reza:
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"Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas."
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A segunda parte dispõe:
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("Conduzir veículo, na via pública,) estando [...] sob a influência de qualquer outra substância [...]" (grifo nosso).
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Na primeira parte, referente a álcool, nenhuma referência à influência etítica.
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Na segunda, concernente a qualquer outra substância, expressa exigência da influência alcoólica.
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Aplicando-se a interpretação simplesmente literal, chega-se à afirmação de que o legislador pretendeu que haja delito com a suficiência de encontrar-se o motorista, na direção de veículo automotor, com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas (primeira parte do art. 306). No caso de "outra substância", contudo, seria necessário a presença da "influência" (segunda parte). Nada mais inadequado.
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Como, então, chegar-se à conclusão de que, em relação à primeira parte da disposição, referente a álcool, é preciso, também, que o motorista esteja dirigindo "sob sua influência"?
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Verifica-se o seguinte: O art. 7.º da lei nova determina:
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"A Lei n. 9.294, de 15 de julho de 1996, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 4.º-A:
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"Art. 4.º-A Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir sob a influência de álcool, punível com detenção'." (grifo nosso).
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Além disso, o art. 5.º, V, da lei nova, prescreve:
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"O art. 291 (do Código de Trânsito) passa a vigorar com as seguintes alterações:
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"Art. 291. [...]
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§ 1.º Aplica-se aos crimes de trânsito [...], exceto se o agente estiver:
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I - sob a influência de álcool ou qualquer outra substância"... (grifo nosso).
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Dessa forma, por meio de interpretação sistemática, vê-se que o espírito da norma, considerada em face do todo, é o de considerar praticado o crime de embriaguez ao volante somente quando o condutor está sob a influência de substância alcoólica ou similar, que tem o significado de direção anormal.
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Seria impróprio que o legislador, no tocante a álcool, considerasse a existência de crime de embriaguez ao volante só pela presença de determinada quantidade no sangue e, no caso de outra substância, exigisse a influência. Como esta possui o conceito de condução anormal, seria estranha a sua exigência na redação da infração administrativa e sua dispensa na definição do crime.
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Estamos, pois, seguramente convencidos de que, nas duas hipóteses - de infração administrativa (art. 165 do CTB) e de crime de embriaguez ao volante (art. 306) - há uma semelhança e uma diferença:
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Semelhança: os dois tipos requerem que o agente esteja dirigindo veículo automotor sob a influência de álcool ou similar;
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Diferença: o limite de teor alcoólico é diverso.
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5. Recusa em submeter-se ao bafômetro
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O art. 277 do CTB, em seu § 3.º, acrescido pelo art. 5.º, IV, da Lei n. 11.705/2008, determina submeter-se às penalidades do art. 165 o motorista que se recusar a submeter-se ao bafômetro.
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Ora, se a recusa tem fundamento constitucional, tratando-se de atitude lícita, como aplicar pena ao condutor?
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6. Questões práticas
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1.ª) Numa blitz, um motorista, dirigindo corretamente na via pública, é submetido ao exame do bafômetro, apurando-se teor alcoólico superior a seis decigramas (taxa de alcoolemia). Autuado por crime de embriaguez ao volante, vem a ser punido com seis meses de detenção e mais as conseqüências legais.
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Certo ou errado?
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Errado. Diante da letra da lei nova, não há crime de embriaguez ao volante se estava dirigindo corretamente (condução normal).
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2.ª) Um motorista, dirigindo incorretamente na via pública (condução anormal), sob a influência de álcool, é submetido ao exame do bafômetro, apurando-se teor alcoólico superior a seis decigramas. Autuado por crime de embriaguez ao volante, é punido com seis meses de detenção e mais as conseqüências legais.
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Certo ou errado?
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Certo, pois dirigia incorretamente e sob a influência de álcool.
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Notas: * Damásio Evangelista de Jesus, é Presidente do Complexo Jurídico Damásio de Jesus (CJDJ), instituição com 37 anos de tradição no ensino jurídico. O CJDJ é composto pela Faculdade de Direito (FDDJ); a Editora (EDJ); os Cursos Preparatórios e o Damásio Evangelista de Jesus Advogados Associados. Em sua carreira de mais de 40 anos, o Prof. Damásio atuou durante 26 anos no Ministério Público e concomitantemente como Professor de Direito Penal. Hoje é Procurador de Justiça aposentado e entre as diversas atividades, atua na ONU e é membro do Conselho Jurídico da FIESP e do Conselho Superior da Federação do Comércio. É também autor de inúmeras obras nas áreas Penal e Processual Penal, adotadas em grande parte das Faculdades de Direito de todo o País.
1 - "86% dos moradores de SP e do Rio aprovam a Lei Seca". In: Folha de S. Paulo, C3, 6 jul. 2008.
2 - "Lei Seca já reduz acidentes, diz polícia". In: Folha de S. Paulo, C1, 5 jul. 2008.
3 - "É preciso ir mais longe". In: LEÃO, Danuza. Folha de S. Paulo, C2, 6 jul 2008.
4 - "A Lei Seca e a secura do Estado". In: GIANNOTTI, José Arthur. In: Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, p. 3, 6 jul. 2008, in fine
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